Para saber “que é o homem” é oportuno interrogar-se a respeito de Deus. O conceito que se tem de Deus reflete na explicação que se dá acerca do homem. Heidegger entendia que o mundo é uma conexão de coisas finitas criadas por Deus e, por isso, a partir do conceito de Deus, é possível discutir e deduzir o que pertence ao ente na medida em que ele é criação de Deus. [1]
A origem do homem está em Deus e o sentido da existência e da natureza real do ser humano encontra-se respectivamente nele. Cabe perfeitamente aqui a arguta observação de Queiruga ao afirmar que “pelo esquecimento de Deus, a própria criatura torna-se obscura”. [2]
Uma concepção renovada da antropologia teológica e pastoral, ambas estagnadas pelo dualismo e concepções vetustas e ultrapassadas, não é apenas necessária como também plausível. A primeira deve buscar uma reflexão renovada e atualizada do homem sob os auspícios de uma hermenêutica teológica e interdisciplinar. A segunda, valendo-se dos resultados desse saber, é desafiada a caminhar em direção a uma práxis que não seja apenas contextualizada aos reais dilemas de nossa comunidade, mas também capaz de produzir renovação e integralização da pessoa a Deus, a si, ao outro e à criação.
Vejamos alguns elementos que exigem da pastoral e da teologia uma reflexão.
1. Inculturação da fé
O dogma é um caminho, uma orientação. Uma afirmação dogmática reflete o contexto que a gerou, pois se trata de uma resposta a uma situação epocal. Gerações que vivem em épocas diferentes devem dar novo vigor, frescor e interpretação ao dogma. Claude Geffré assevera que devemos “reinterpretar os enunciados dogmáticos à luz de nossa leitura atual da Escritura”. [4] Não é possível anunciar o Evangelho sem considerar o homem moderno, o seu destinatário.
2. Visão integral do ser humano.
Não é mais possível negar os reclamos científicos que exigem da fé uma resposta dialógica. Não podemos mais aceitar uma visão de homem que lhe negue sua completude. Não é mais possível se fechar à possível abertura que os tempos modernos apresenta à renovação da Igreja.
Neste ínterim, a pastoral deve resgatar o sentido de pessoa que encontra no amor e liberdade de Deus o seu fundamento. Ser pessoa é ser livre. [5] Heidegger afirmava que a liberdade não é uma propriedade (Eigenschaft) do homem, mas que o homem é essencialmente livre. Entendia o filósofo que para o homem adorar a Deus precisava estar livre de Deus, livre para se desviar de Deus, não determinado ou compelido por Deus para adorá-lo. [6] Se o homem adorar a Deus deve fazê-lo mediante uma ação livre, não compelida. Ser livre, em última instância, é ser capaz de se decidir a favor ou não de Deus.
A concepção heideggeriana de modo algum entra em conflito com a teologia. Em Deus subsiste em toda plenitude a liberdade, o amor e a relação, elementos pessoais constitutivos. Deus criou o homem como ser livre, “chamado para se decidir na abertura, para acolher o dom de Deus salvador-criador e para viver o amor concreto ao outros seres pessoais e assumir responsabilidade face ao mundo criado por Deus”. [7] Todavia, como a experiência tem demonstrado e a própria escatologia paulina, nem todos ainda se submetem ao senhorio de Cristo e respondem positivamente ao seu chamado (1Co 15,24-28). Não é isto indício de uma liberdade, mesmo que negativa?
Ao criar o homem como ser livre (para), o próprio Senhor arca com a responsabilidade de o homem desejar ser livre d’Ele. O ser, assim, é pessoa, criada pelo amor e liberdade de Deus, capaz de se decidir a favor ou mesmo contrário a Deus. Javé decide criar o homem e o faz como um ser livre. Embora não explícito, a última proposição conforma-se à concepção do escritor, segundo a qual Deus criou o homem e o guia para a salvação. Segundo Werner Schmidt, os relatos de Gn 2-8 apresentam uma estrutura básica e uma dinâmica que podem ser descritas nos seguintes estágios: “providencia salvadora de Dios, culpa del hombre, castigo, acogida misericordiosa y nuevo comienzo”. [8] O mundo é o palco no qual Deus revela o seu amor ao homem e reafirma sua autonomia e liberdade ao permitir que ele faça suas próprias escolhas, mesmo que essas contrariem seus mandamentos (Gn 3). Somente uma perspectiva da liberdade de Deus e do homem pode conformar-se ao sentido de autonomia do sujeito, da natureza e do social propalados pela Modernidade.
A pastoral, por conseguinte, não se pode fechar ao novo contexto que tanto desafia quanto impele a Igreja ao cumprimento de sua missão no mundo. Teólogos pentecostais pensemos nisto.
Esdras Costa Bentho
Mestrando em Teologia - PUC RJ
1 Martin HEIDEGGER. Introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 264.
2 Andrés T. QUEIRUGA. O Vaticano II e a teologia, in Alberto MELLONI; Christoph THÉOBALD (orgs.)Vaticano II: um futuro esquecido? CONCILIUM, 312-2005/4, Rio de Jneiro: Vozes, p. 24.
3 Roger HAIGHT. Dinâmica da teologia. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 14.
4 Claude GEFFRÉ. Crer e interpretar: a virada hermenêutica da teologia. Rio de Janeiro: Vozes, p. 73.
5 Alfonso GARCÍA RUBIO. Elementos de antropologia teológica: salvação cristã: salvos de quê e para quê? 4.ed., Rio de Janeiro: Vozes, 2007. O autor afirma que a pessoa é chamada a ser senhora de sua própria vida, capaz de fazer suas próprias escolhas e assumir as responsabilidades adjacentes à liberdade, p. 107-115.
6 Michael INWOOD. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, p. 106. Heidegger distingue sete tipos de liberdade, razão pela qual os conectivos para e de aparecem em itálicos, uma vez que representam dois conceitos de liberdade mais importantes para Heidegger: (1) libertação, libertar-se de; e (2) ligar-se a, liberdade para. Ele distingue Eigenschaft (qualidade do homem) e Eigentum (possessão do homem). Assim a liberdade do homem é definida como uma propriedade, Eigentum, e não uma qualidade, Eigenschaft.
7 Alfonso GARCÍA RUBIO. (ed.) O humano integrado: abordagens de antropologia teológica. Petrópolis: Vozes, 2007, p.265.
8 Werner H. SCHMIDT. Introduccional Antiguo Testamento. Salamanca:EdicionesSigueme, 1983, p. 105.